Um pequeno rato
saltita entre os cardos, confiante que nenhum predador o atacará sem se picar
dolosamente. Os pequenos animais, sabe-o bem, têm de se esconder para se
protegerem. Percorre as fileiras de “produtos” como se estivesse num qualquer
supermercado, vendo, cheirando e tocando. As únicas diferenças entre um local e
outro é que ali não há fila para pagar, mas no supermercado também não correria
risco de vida.
O calor aperta no
cimo da escarpa. Se as aves suassem, o gavião estaria alagado em suor. Até os
lagartos estão recolhidos. Mas ele precisa de caçar.
Ele sabe que é o
maior predador das redondezas, depois do falcão peregrino ter desaparecido para
nunca mais voltar. É intocável nas alturas, rei dos céus e terror dos animais
dos vales em redor.
O gavião sente que
há muitas presas lá em baixo, escondidas entre as pedras e as silvas,
alimentando-se mesmo nas horas de maior calor. Ele sabe que mais tarde ou mais
cedo a caça irá revelar-se, e que ele ficará muito grato pela comida.
O rato é um
ilustre habitante do vale, se bem que não se distinga particularmente de
centenas de membros da sua família, que há milhares de anos habitam estes vales
sombrios.
Invariavelmente,
membros da família são repasto de caçadores, sejam estes alados ou rastejantes,
tenham garras, bico ou dentes. Todos nos impressionamos com essa carnificina, e
os mais velhos dizem invariavelmente, “é
a vida”. Mas o nosso rato pensa “só
se for para ti, que tens quase três anos, estás velho e lento e queres morrer.
Eu não!”
A música dos
insectos parece-lhe quase ensurdecedora. Os grilos parecem doidos, chamando.
Até parece que as próprias formigas gritam umas com as outras. Aparece no
caminho um resto de tubérculo particularmente apetitoso, o que o faz estremecer
de emoção.
O gavião, mesmo
sabendo que a sua presença será muito mais notada, e que poderá ser prejudicial
para a caçada, resolve iniciar a sua ronda pelos vales, mostrando-se.
A ave executa essa
performance para se mostrar, mas também para encontrar animais envelhecidos que
já pouco de mexem, e que podem ser apanhados facilmente. Mas como ave de rapina
o que gosta é caçar animais novos, proporcionando um jogo emotivo, doses
maciças de adrenalina, e se conseguir agarrar a sua presa, pode dizer que o seu
dia está ganho.
O rato está em
êxtase (verdade seja dita, ele entra nesse estado sempre que consegue comer
algo que gosta particularmente, o que não é raro), e nem se apercebe que a uns
quilómetros dali o seu arqui-inimigo levantou voo. Já o tinha visto muitas
vezes, mas felizmente o contrário nunca tinha acontecido. Dos ratos que são
vistos pelo gavião poucos são aqueles que contam a sua história no serão seguinte.
Mastigando
rapidamente o tubérculo, o rato continuava incomodado com a barulheira infernal
dos seus vizinhos de ocasião. Compara a sua situação à estadia numa taberna ao
final do dia, em que os restantes clientes estão todos aos gritos e aos urros,
impondo cada qual a sua opinião avinagrada sobre a marcação de um penalti, e se
deveria ter sido expulso o jogador alegadamente faltoso. “Se a comida não fosse tão boa, voltava para casa só para não ouvir
estes idiotas!”, pensou quase ensandecido com o calor e a chinfrineira.
O gavião rodeia o
vale pela esquerda, conforme o seu hábito, e sobe um pouco, pairando sobre um
grupo de arbustos densos, perdidos em terreno arenoso. Sabe que ali costuma
haver presas, escondidas e protegidas pela vegetação. Não foram raras as vezes
que teve de desistir da perseguição perante a investida dos cardos.
O rato continuou a
sua tarefa de degustação, desatento e relaxado. “É de dia, está calor, o gavião deve estar a querer tudo menos andar por
aqui atrás de ratitos.” Mal sabia ele que a besta dos céus já o tinha
visto. E mais do que uma vez nos últimos tempos. E que para além de saber da
sua existência, sabia onde se alimentava e quando. É tétrico quando estamos na
mira de um assassino nato. É menos tétrico quando nem desconfiamos.
O gavião estava
mais uma vez à procura de caça. Não de presas fáceis, mas de perseguição pura.
Sentia-se cheio de força e agilidade. E tinha de continuar a impor a sua força
nos vales, e nada melhor que caçar animais jovens e saudáveis.
Pela experiência e
por visitas anteriores, já conseguia perceber o que se passava dentro do
labirinto de túneis, onde era largo e estreito, onde haviam cardos e outros
espinhos, e onde poderia estar perseguir a sua presa.
O rato nem se
apercebeu que instantaneamente todos os barulhentos insectos se calaram. Apenas
o calor ficou. E o tubérculo delicioso. O mundo tinha ficado completamente
parado, e o único ser vivo era o rato, cujo abdómen crescia a olhos vistos.
A ave estava
pousada num ramo alto de um arbusto de folhas verdes escuras, de onde podia ver
todo o movimento de entrada e saída do outeiro. De forma a poder estar atento,
rodava o seu pescoço de uma forma rápida, uma e outra vez. Os seus olhos semi
cerrados mostravam toda a sua atenção nos mais ligeiros movimentos ou sons.
O rato estava a
ficar saciado, pois ao contrário de boa parte de nós, humanos, eles comem para
viverem, e não o contrário. Há algum tempo que não se alimentava de tubérculos
tão deliciosos. Pensava nas coisas boas da vida, e que a boa comida era, para
ele, parte integrante. Parou, não sabendo se por estar cheio ou por ter
pressentido algo.
Apercebeu-se que
estava tudo silencioso. Demasiado silêncio. Pensou que poderia estar nas
redondezas uma cobra, e que a sua aproximação provoca este silêncio
angustiante. Desconfiou mal e ajuizou pior. E quando estamos nesse
“supermercado”, temos de se acertar nos perigos, caso contrário, a morte
espreita.
O rato pôs-se em
estado de alerta vermelho. Olhando para os lados, viu outros animais de olhos
bem abertos, como se estivessem colados aos ramos e folhas, procurando passar
despercebidos aos olhos do predador. Ainda não sabia onde estava o perigo e
qual era.
Tinha várias
opções: fugir ruidosamente e velozmente, e se fosse a cobra só por profundo
azar passaria por ela e seria agarrado (se ela não estivesse perto jamais seria
apresado); ficar tão imóvel quanto possível, esperando que o perigo não
estivesse a olhar para ele; ir passando de um arbusto para outro, até ficar nas
cercanias e poder fugir para o monte, onde se situavam os túneis familiares.
O gavião estava
ciente da sua presa. Localizou-a logo que tinha pousado. Divertido, olhava
fixamente para ela e apercebeu-se da sua mudança de comportamento. Estava
completamente ciente que esta presa já não lhe escapava, fizesse o que fizesse,
pois estava num beco sem saída, excepto por cima.
O roedor ainda não
tinha noção da sua situação. Como nos filmes de terror classe B, sabemos que um
qualquer Freddy Krueger anda aí com a sua camisola às riscas e lâminas a fazer
de unhas, pronto para nos fatiar, mas julgamos sempre que a nossa situação é
bem melhor do que realmente é. Pensou que caso ficassem todos como animais
empalhados, o caçador, fosse ele qual fosse, preferiria ir para outras paragens,
onde as presas estivessem menos alertas.
A ave predadora
tinha estudado tudo, previsto tudo. A sua presa estava por um fio. Era uma
caçadora experiente e confiante, tendo tido bons professores. O clímax
aconteceu. Estendendo o seu pescoço e ao abrir o bico gritou, aterrorizando a
sua vítima, gelando-a perante a sua aproximação instantânea. A fuga era
impossível. Estava perdido!
O nosso rato ouviu
o grito e saltou, fugindo rapidamente dali, assim como todos os que ali
permaneciam. Importava era fugir, não importando para onde. O caos tinha-se
instalado na moita, cada um sentindo calafrios na espinha sentindo as garras
assassinas prestes a rasgarem-lhe a pele das costas. Os guinchos eram mais que
muitos, sobrepondo-se aos ruídos de unhas e garras a tocar no solo arenoso ou
nos ramos.
O gavião tinha
agarrado a sua presa numa das patas, estando prestes a levantar voo. Desta vez,
o nosso rato tinha escapado. Desta vez outro membro da sua família tinha tomado
o seu lugar no destino. Até uma próxima vez. Até à próxima.
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