quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Gavião e o Rato


Um pequeno rato saltita entre os cardos, confiante que nenhum predador o atacará sem se picar dolosamente. Os pequenos animais, sabe-o bem, têm de se esconder para se protegerem. Percorre as fileiras de “produtos” como se estivesse num qualquer supermercado, vendo, cheirando e tocando. As únicas diferenças entre um local e outro é que ali não há fila para pagar, mas no supermercado também não correria risco de vida.

O calor aperta no cimo da escarpa. Se as aves suassem, o gavião estaria alagado em suor. Até os lagartos estão recolhidos. Mas ele precisa de caçar.

Ele sabe que é o maior predador das redondezas, depois do falcão peregrino ter desaparecido para nunca mais voltar. É intocável nas alturas, rei dos céus e terror dos animais dos vales em redor.

O gavião sente que há muitas presas lá em baixo, escondidas entre as pedras e as silvas, alimentando-se mesmo nas horas de maior calor. Ele sabe que mais tarde ou mais cedo a caça irá revelar-se, e que ele ficará muito grato pela comida.

O rato é um ilustre habitante do vale, se bem que não se distinga particularmente de centenas de membros da sua família, que há milhares de anos habitam estes vales sombrios.

Invariavelmente, membros da família são repasto de caçadores, sejam estes alados ou rastejantes, tenham garras, bico ou dentes. Todos nos impressionamos com essa carnificina, e os mais velhos dizem invariavelmente, “é a vida”. Mas o nosso rato pensa “só se for para ti, que tens quase três anos, estás velho e lento e queres morrer. Eu não!

A música dos insectos parece-lhe quase ensurdecedora. Os grilos parecem doidos, chamando. Até parece que as próprias formigas gritam umas com as outras. Aparece no caminho um resto de tubérculo particularmente apetitoso, o que o faz estremecer de emoção.

O gavião, mesmo sabendo que a sua presença será muito mais notada, e que poderá ser prejudicial para a caçada, resolve iniciar a sua ronda pelos vales, mostrando-se.

A ave executa essa performance para se mostrar, mas também para encontrar animais envelhecidos que já pouco de mexem, e que podem ser apanhados facilmente. Mas como ave de rapina o que gosta é caçar animais novos, proporcionando um jogo emotivo, doses maciças de adrenalina, e se conseguir agarrar a sua presa, pode dizer que o seu dia está ganho.

O rato está em êxtase (verdade seja dita, ele entra nesse estado sempre que consegue comer algo que gosta particularmente, o que não é raro), e nem se apercebe que a uns quilómetros dali o seu arqui-inimigo levantou voo. Já o tinha visto muitas vezes, mas felizmente o contrário nunca tinha acontecido. Dos ratos que são vistos pelo gavião poucos são aqueles que contam a sua história no serão seguinte.

Mastigando rapidamente o tubérculo, o rato continuava incomodado com a barulheira infernal dos seus vizinhos de ocasião. Compara a sua situação à estadia numa taberna ao final do dia, em que os restantes clientes estão todos aos gritos e aos urros, impondo cada qual a sua opinião avinagrada sobre a marcação de um penalti, e se deveria ter sido expulso o jogador alegadamente faltoso. “Se a comida não fosse tão boa, voltava para casa só para não ouvir estes idiotas!”, pensou quase ensandecido com o calor e a chinfrineira.

O gavião rodeia o vale pela esquerda, conforme o seu hábito, e sobe um pouco, pairando sobre um grupo de arbustos densos, perdidos em terreno arenoso. Sabe que ali costuma haver presas, escondidas e protegidas pela vegetação. Não foram raras as vezes que teve de desistir da perseguição perante a investida dos cardos.

O rato continuou a sua tarefa de degustação, desatento e relaxado. “É de dia, está calor, o gavião deve estar a querer tudo menos andar por aqui atrás de ratitos.” Mal sabia ele que a besta dos céus já o tinha visto. E mais do que uma vez nos últimos tempos. E que para além de saber da sua existência, sabia onde se alimentava e quando. É tétrico quando estamos na mira de um assassino nato. É menos tétrico quando nem desconfiamos.

O gavião estava mais uma vez à procura de caça. Não de presas fáceis, mas de perseguição pura. Sentia-se cheio de força e agilidade. E tinha de continuar a impor a sua força nos vales, e nada melhor que caçar animais jovens e saudáveis.

Pela experiência e por visitas anteriores, já conseguia perceber o que se passava dentro do labirinto de túneis, onde era largo e estreito, onde haviam cardos e outros espinhos, e onde poderia estar perseguir a sua presa.

O rato nem se apercebeu que instantaneamente todos os barulhentos insectos se calaram. Apenas o calor ficou. E o tubérculo delicioso. O mundo tinha ficado completamente parado, e o único ser vivo era o rato, cujo abdómen crescia a olhos vistos.

A ave estava pousada num ramo alto de um arbusto de folhas verdes escuras, de onde podia ver todo o movimento de entrada e saída do outeiro. De forma a poder estar atento, rodava o seu pescoço de uma forma rápida, uma e outra vez. Os seus olhos semi cerrados mostravam toda a sua atenção nos mais ligeiros movimentos ou sons.

O rato estava a ficar saciado, pois ao contrário de boa parte de nós, humanos, eles comem para viverem, e não o contrário. Há algum tempo que não se alimentava de tubérculos tão deliciosos. Pensava nas coisas boas da vida, e que a boa comida era, para ele, parte integrante. Parou, não sabendo se por estar cheio ou por ter pressentido algo.

Apercebeu-se que estava tudo silencioso. Demasiado silêncio. Pensou que poderia estar nas redondezas uma cobra, e que a sua aproximação provoca este silêncio angustiante. Desconfiou mal e ajuizou pior. E quando estamos nesse “supermercado”, temos de se acertar nos perigos, caso contrário, a morte espreita.

O rato pôs-se em estado de alerta vermelho. Olhando para os lados, viu outros animais de olhos bem abertos, como se estivessem colados aos ramos e folhas, procurando passar despercebidos aos olhos do predador. Ainda não sabia onde estava o perigo e qual era.

Tinha várias opções: fugir ruidosamente e velozmente, e se fosse a cobra só por profundo azar passaria por ela e seria agarrado (se ela não estivesse perto jamais seria apresado); ficar tão imóvel quanto possível, esperando que o perigo não estivesse a olhar para ele; ir passando de um arbusto para outro, até ficar nas cercanias e poder fugir para o monte, onde se situavam os túneis familiares.

O gavião estava ciente da sua presa. Localizou-a logo que tinha pousado. Divertido, olhava fixamente para ela e apercebeu-se da sua mudança de comportamento. Estava completamente ciente que esta presa já não lhe escapava, fizesse o que fizesse, pois estava num beco sem saída, excepto por cima.

O roedor ainda não tinha noção da sua situação. Como nos filmes de terror classe B, sabemos que um qualquer Freddy Krueger anda aí com a sua camisola às riscas e lâminas a fazer de unhas, pronto para nos fatiar, mas julgamos sempre que a nossa situação é bem melhor do que realmente é. Pensou que caso ficassem todos como animais empalhados, o caçador, fosse ele qual fosse, preferiria ir para outras paragens, onde as presas estivessem menos alertas.

A ave predadora tinha estudado tudo, previsto tudo. A sua presa estava por um fio. Era uma caçadora experiente e confiante, tendo tido bons professores. O clímax aconteceu. Estendendo o seu pescoço e ao abrir o bico gritou, aterrorizando a sua vítima, gelando-a perante a sua aproximação instantânea. A fuga era impossível. Estava perdido!

O nosso rato ouviu o grito e saltou, fugindo rapidamente dali, assim como todos os que ali permaneciam. Importava era fugir, não importando para onde. O caos tinha-se instalado na moita, cada um sentindo calafrios na espinha sentindo as garras assassinas prestes a rasgarem-lhe a pele das costas. Os guinchos eram mais que muitos, sobrepondo-se aos ruídos de unhas e garras a tocar no solo arenoso ou nos ramos.

O gavião tinha agarrado a sua presa numa das patas, estando prestes a levantar voo. Desta vez, o nosso rato tinha escapado. Desta vez outro membro da sua família tinha tomado o seu lugar no destino. Até uma próxima vez. Até à próxima.


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