quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Luís

 

Desde cedo o Luís descobriu que não gostava de estudar e foi procurar trabalho. Porém, como descobriu que não gostava de trabalhar, foi procurar forma de conseguir subsistir sem fazer nada. “Se não gostas de estudar nem de trabalhar, o que é que vais fazer da tua vida?”, perguntava o seu já muito desanimado pai.

E o próprio Luís não sabia dar-lhe resposta. Porém, sabia era que não gostava de se esforçar em nada. E ainda tinha a arte de convencer os seus amigos que trabalhar só trazia infelicidade e que estudar era uma pura perda de tempo.

Uma vez a sua tia, D. Belmira, virou-se para ele e disse “Como não gostas de trabalhar nem de estudar, devias era arranjar uma velha rica”, e essa frase, lançada como uma brincadeira, destinada a cair em saco roto, bateu fundo na cabeça do Luís. E se fosse essa a solução? E se fosse essa a sua forma perfeita de viver a vida?

No dia seguinte, todo janota e com a barba feita, lá estava o Luís em casa da sua tia para saber se ela tinha amigas ricas, de preferência velhas como ela, pois as novas endinheiradas nada queriam com ele. É que um tipo tem de se safar na vida, e esta parecia ser uma excelente forma de se viver, desde, claro está, que a velha não o pusesse a trabalhar.

Depois de muito se rir e de verificar, com espanto, que o seu sobrinho realmente falava a sério, a D. Belmira pôs-se a pensar qual seria a melhor "vítima". Tinha de ser rica e velha, e como ia levar com um cromo como o seu sobrinho, tinha de ser bastante ingénua e muito crédula.

A escolha recaiu logo na D. Augusta, uma viúva endinheirada e que se julgava ainda na flor da idade, se bem que essa já tinha passado há muito. Ela tinha uns pretendentes, mas eram mais caquéticos que ela, e por isso não ofuscariam a pretensão do Luís.

E a D. Augusta foi logo convidada para almoçar em casa da D. Belmira, e tal como combinado, apareceu “de surpresa” o Luís. “Estava a passar por aqui e resolvi aparecer para dar um grande beijo à minha linda tia”, disse um Luís falsamente carinhoso, perante os olhares gulosos da esfomeada D. Augusta, viúva há demasiado tempo….

E foi assim que o cabrão do Cupido apareceu à janela e disparou a sua seta encantada, atingindo o coração empedernido da D. Augusta, encantando-se imediatamente pelo Luís. Era o Luís para aqui, o Luís para ali, moço tão formoso, olha que busto, tão simpático, tão prestável, que sorte de ser seu sobrinho, D. Belmira.

E no fim do almoço lá foi o Luís acompanhar a D. Augusta a casa, para esta não ir sozinha, pois podia-se sentir mal, e no caminho, a velha ia relatando o que tinha de posses, e o que não tinha de herdeiros, fazendo com que o Luís começasse a “afiar as facas” no propósito de ficar o resto da sua vida como queria, ou seja, sem fazer pevide.

Olhou de soslaio para a viúva e disse para si mesmo “Esta velha carcaça só deve durar mais uns três anos”, e rematou: “Três anos de inferno e trinta de paraíso. Parece-me mesmo muito bem!”, e com o sorriso mais cínico que conseguiu, deu o braço à D. Augusta e começaram a caminhar em direção àquela que, em breve, seria a sua nova casa.

Os dias passaram e Luís e Augusta eram cada vez mais inseparáveis. Ele ainda teve de correr com uns dois ou três pretendentes, que andavam a “arrastar a asa” à D. Augusta, mas como não eram tão rijinhos de carnes como o ele, não apresentavam ameaça credível. E quando o vento frio batia nas vidraças, o Luís lá ficava a aquecer-lhe o edredão de penas…

O que o Luís não esperava é que nesse entretanto, a viúva pareceu rejuvenescer, passou a usar roupa de cores mais claras, e emagreceu bastante, enquanto que o Luís deixou crescer o bigode, numa tentativa de parecer mais velho e responsável. E saíam todos os dias para almoçar na Baixa, em restaurantes com mesa marcada.

Já se tinham passado mais de seis anos desde que os pombinhos se tinham conhecido, e eles pareciam que tinham trocado de idade. A D. Augusta estava elegante, confiante e saudável, enquanto que o Luís parecia que tinha envelhecido vinte anos, sempre com um semblante carregado.

É que a vida do Luís nestes últimos anos tinha sido apenas tratar da D. Augusta, com imensos requintes e horários rígidos: era o cházinho de ervas, a massagem dos pés e dos bicos de papagaio, o tratamento dos calos, a confeção do jantar com dieta rigorosa, as compras, o raio que a parta!

E o Luís só pensava “Mas esta velha não morre?”, “Mas como é que o raio da velha está cada vez mais saudável?” “O que é que eu fui fazer da minha vida?”. E começou a entrar em depressão, em desespero, em angustia, e piorava muito quando se cruzava com alguma jovem da sua idade e ela deixava largar um olhar mais demorado.

Tenho de fazer alguma coisa senão rebento! A velha tem de ir e é já.” E eis que, num impulso, Luís marca uma viagem surpresa à Madeira, destino romântico de eleição, com o objetivo da sua Augustinha conhecer a ilha, mudar de ares, deixá-lo sossegado uns dias. E claro, resolver o seu problema.

E lá foram as duas alminhas para o Funchal, ficando instalados num excelente hotel com uma vista magnifica sobre a baía. A Augustinha muito feliz com a surpresa, e o Luís com a esperança que dias melhores ainda podiam vir, e marcaram um tour à roda da ilha, com um passeio por uma das Levadas mais belas.

A Levada que o Luís escolheu tinha apenas 1,5 km de ida e de igual distância na volta, não sendo necessário guia e dentro das possibilidades físicas da D. Augusta, e era muito recomendada, chamada “Vereda dos Balcões”, com vistas incríveis sobre um profundo vale, na Freguesia do Faial. Era perfeito.

No percurso, Luís, manhoso, deixou-se ficar para trás, à espera do momento certo, enquanto que a sua Augustinha tirava fotos e lançava gritinhos de contentamento “Ó meu querido, olha ali que é tão lindo”. Luís cerrava os dentes e dizia “É mesmo uma linda paisagem, meu amor, mas sabes que tu és muito mais linda que tudo isso, não sabes?”. E lançava-lhe beijos para o ar.

Chegados ao Miradouro dos Balcões, Luís abraçou-a por trás e contemplaram juntos a paisagem incrível. Ele sentiu que era chegado o momento. Mas, ao iniciar o ato criminoso que arquitetou, arrependeu-se, sentiu que não tinha fibra moral para tal, nem sequer maldade suficiente. Uma coisa era pensar, e outra bem diferente era executar.

Mas no meio de todos esses pensamentos, Luís já tinha dado ao seu corpo um impulso em direção ao precipício, no sentido de empurrar a sua Augustinha, mas eis que nesse preciso momento ela debruça-se para ver melhor o fundo do vale, e o Luís ganhou balanço em direção ao espaço aberto, e sem a levar com ele…..

E o Luís viu-se assim a cair nas profundezas, sabendo bem que ia morrer daí a segundos, vendo ao mesmo tempo que a sua Agustinha permanecia sã e salva, como intimamente queria, no alto da montanha, sentindo no desespero dela que o amava de verdade, e ele finalmente seria livre de todas as amarguras que a sua vida lhe tinha proporcionado. E desta forma, morreu feliz!