terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O Crápula (5 de 6) História

 


HISTÓRIA

As discussões entre a Rita e o Hélder começavam todas as manhãs bem cedo. E com os gritos acordavam a D. Ermelinda, esta metia-se no meio para os calar. No início ainda conseguia impor alguma ordem, mas foi sol de pouca dura.

Todos nós percebíamos que o Hélder estava prestes a explodir, e que quando a “coisa estava quente”, ele ameaçava contar a todos. Nessas ocasiões todo o bairro sustinha a respiração para ouvir. Era a altura em que a Rita deixava de gritar e batia com a porta. E todos nós retomávamos o que estávamos a fazer.

Todos os dias era a mesma coisa. Gritos ao pequeno-almoço, porta do quarto a bater e a porta da rua a bater, pois o Hélder ia trabalhar. Passadas umas horas ele regressava do trabalho e havia mais gritos até ao jantar, porta do quarto a bater. E desta forma sabíamos as horas, pois eles eram muito pontuais na sua gritaria.

Tornou-se um hábito, uma rotina familiar. Não eram os únicos no bairro. Só se tornavam notados por serem quem são, pela sua história, e por sabermos que para além de se darem mal, ali havia história que fedia. E que todos queriam saber.

Claro que já lhes tinham tido várias vezes que não podiam andar nas discussões, pois a Rita estava grávida e que isso podia fazer mal à criança, mas era escusado. Parecia que eles adoravam aquilo, e até a D. Ermelinda já não conseguia parar as batalhas verbais dos dois.

Num sábado eles estavam, como habitualmente aos urros um com o outro. E foi quando a Rita bateu a porta do quarto que ele disse, numa voz rouca e mais calma que o habitual “Amanhã à noite os teus pais vêm cá jantar e vou-lhes contar tudo”.

Não se ouviram mais discussões, nem nesse dia, nem no outro. Aliás, não se ouviu um pio nessa casa. Só vimos a D. Ermelinda a comprar uns pargos muito jeitosos na peixaria, sinal que o jantar com a família da Rita era de importância.

Somos um povo curioso, demasiado até. Nunca tínhamos visto os pais da Rita, e queríamos saber quem eles eram, e por isso todos nós ficámos na rua ou na janela, a fingir que não era nada, quando vimos aparecer no principio da rua um casal bem-apresentado. Só podiam ser eles. Os pais da Rita chegaram.

Toda a rua estava parada a vê-los. E quando os pais da Rita notaram que eram o foco das atenções, assustaram-se. Estavam já a dar uma cautelosa meia-volta quando o pai do Hélder apareceu a saudá-los e os encaminhou para sua casa.

Quando por fim acabou o jantar, todos nós vimos os pais da Rita saírem, e com eles a sua filha, já com uma barriga que metia dó, com umas trouxas de roupa, sinal que a sua estadia em casa do Hélder tinha terminado.

O pai do Hélder saiu pouco depois, visivelmente abalado. Ia beber alguma coisa forte. E confidenciou a um amigo que o bebé afinal não era do Hélder. Ele tinha sido enganado por aquela putéfia. E o Hélder tinha descoberto a trama através de uma prima da Rita, que não gostava nada dela e sabia da história.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O Crápula (4 de 6) Fuga

 


FUGA

O Hélder? Não acredito! O puto mais sossegado do bairro não pode ter feito uma coisa destas! A maluca da Ermelinda vai ser avó! O Hélder passou do tipo mais incógnito ao mais badalado do bairro. E com toda a razão.

Naquela sociedade em que todos os filhos tinham de ter pai e mãe, casados e juntos para toda a vida, uma moça aparecer grávida de um tipo que nem tinha meios de subsistência era um grande choque. E se ainda fosse um espertalhão, ainda se compreendia. Mas era o Hélder! O puto mais sonso de toda a cidade.

Toda a gente falava disso, desde o padeiro, ao entregador de jornais, os professores, a varina, os bêbados, e até as mulheres de má fama. Todos incrédulos, e todos esticavam o dedo acusador ao Hélder, pois é sempre muito melhor atirar pedras que levar com elas na cabeça.

Até o padre, pessoa respeitada e sensata, conhecido por mediar todos os conflitos que surgiam no seu rebanho, referiu o caso na sua homilia semanal, e todos concordaram com a cabeça que é um caso de pura pouca vergonha, que não se podia voltar a repetir naquela comunidade.

Durante uns tempos não se viu nem o Hélder nem os seus pais. Os vizinhos diziam que eles tinham abalado para a terra durante a noite, a fugir da vergonha e do falario das gentes, e especialmente da família da moça, que inclusive já os tinham procurado logo após a fuga.

Eu sabia que em circunstâncias normais dificilmente alguém daria com a língua nos dentes e diria para onde eles tinham ido. Mas a brutalidade da D. Ermelinda fez com que ganhasse muitos inimigos, e depressa todos nós sabíamos para onde eles tinham fugido. E de certeza que os familiares da Rita também já sabiam…

Assim, foi sem surpresa que, passadas poucas semanas, numa manhã chuvosa e ventosa, vimos chegar a D. Ermelinda, acompanhada pelo marido e pelo Hélder, mais magro e sério. E com eles vinha a Rita, já visivelmente de esperanças.

Eles tinham casado, pelo anel de outo novo e brilhante que ambos postavam nos dedos, e desta forma a honra de ambos e das famílias estava parcialmente reposta. Deste modo, o puto Hélder era agora um homem de bem, casado e quase a ser pai.

Coitada da Rita, que iria viver na mesma casa da sua querida sogra, bruta que nem umas casas, e do Hélder, que sem preparo, teria de deixar os estudos para se dedicar a algo, de forma a levar dinheiro para a família.

A partir desse dia nunca mais ninguém viu o Hélder com um sorriso na cara. Pior, ele andava com uma cara de autêntico doido varrido. Eu só pensava “o miúdo quando nascer vai assustar-se quando vir a cara do pai”.

E tudo isto porque nenhum dos dois não conseguiu travar os seus apetites. Mas, pensava eu, que apetites? Nunca tinha visto o Hélder sequer a beijar ou a desejar uma miuda, quando mais saber o que fazer para a emprenhar. Algo estava errado naquela história. Só não sabia o quê.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O Crápula (3 de 6) Miúda

 



MIÚDA

Como pouco tínhamos para fazer, procurámos saber a razão de procedimento tão estranho por parte do Hélder, o tipo mais certo e mais totó que conhecíamos, e talvez do mundo.

E tanto procurámos que, num belo dia, a resposta nos veio cair nos pés, no sentido literal da palavra, pois uma moça, que nunca tínhamos visto e de resto muito assustada, se esbandalhou à nossa frente.

Ao ajudarmos a rapariga, ficámos a saber que ela procurava um tal de Horácio que lhe tinham dito que morava por estas bandas. Horácio só conhecíamos o barbeiro, mas como tinha mais de 80 primaveras, só se fosse o avô dela. Não era.

Pela descrição do tal Horácio não chegávamos lá, até que ela começou a descrever o sujeito pelas caraterísticas não físicas. E surgiu a desconfiança. Será Hélder? Será o totó? E porque razão uma moça nada feia procuraria o Hélder. Seria prima.

Não era prima, mas pelos vistos, era de certa forma muito chegada. Demasiado, até. Tão próxima que arregalámos os olhos de espanto e surpresa, e ficámos abismados por uns longos momentos.

Conhecem-no?”, perguntou a rapariga, mais que ciente da nossa resposta. É que tenho de falar um assunto muito sério com ele, antes que o meu pai e o meu tipo vão falar com ele. E quando eles forem, não vai ser bonito, garanto.

Ficámos a olhar uns para o chão, outros para o ar, e outros ainda abalaram dali para fora, não querendo participar naquilo que parecia resultar numa luta de titãs, ou seja, entre a mãe do Hélder e o pai e o tio da miúda.

O parvo do Hugo começou a brincar com o assunto, como é natural, vindo do palhaço do grupo. “Mas o que é que ele te fez? Emprenhou-te?”, e riu-se, certo que a resposta mais que certa era “Não!”. Mas essa resposta não veio logo. Nem nunca.

Claro que a ausência dessa negação por parte da rapariga significava que era mesmo isso que tinha acontecido, e isso é que era deveras estranho. “Então o palhaço do Hélder tinha apetites sexuais como toda a gente?” Isso era perturbador.

A mãe do Hélder vinha a subir a rua, e o seu arfar ouvia-se à distância, pelo que começámos a dizer à moça “Olha, vem a aí a tua sogra!” E o nosso riso de escárnio foi demasiado para ela, que largou a correr, escorrendo lágrimas.

No mesmo instante, passa por nós a correr o Hélder, que regressando com a mãe do mercado, e vendo-a ao longe, larga os sacos das compras aos pés da sua progenitora e persegue a miúda, gritando “Rita, oh Rita, espera!”.

A rua toda pára para ver a cena! A matrona fica a berrar pelo Hélder, o Hélder fica a gritar pela Rita, a Rita grita de raiva, frustrada, desconsolada, triste e zangada, numa enorme mistura de emoções. A mãe persegue o filho e o filho persegue a miúda, e a miúda foge de tudo. E parecendo um filme em câmara lenta, todos saem da nossa vista.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O Crápula (2 de 6) Desacato

 


DESACATO


A D. Ermelinda bem chamava pelo Hélder, mas dele nem o cheiro. E a vizinhaça desesperava, pois os berros da matrona a chamar pelo filho eram bem piores que os de um bezerro desmamado.

Claro está que ninguém no seu perfeito juízo se atreveria a mandá-la calar, com receio de consequências físicas e morais irreparáveis. É que a matrona era bruta de língua, para além dos seus braços parecerem uns presuntos curados.

Já a rouquidão ameaçava a garganta daquela verdadeira gárgula, quando vi de relance o desgraçado do Hélder, a esconder-se atrás de um poste de iluminação, com receio de ser esventrado pela sua progenitora.

É evidente que num grupo de adolescentes há sempre um palhaço que quer ver confusão, e neste caso, o Hugo, ao descobrir o medroso do Hélder escondido, desatou a gritar “Ó D. Ermelinda, o seu filho já chegou”, e todos começámos a gritar o mesmo em coro.

É fantástico o poder da motivação, mesmo que seja resultado de raiva ou fúria. A D. Ermelinda era gorda, entroncada, um verdadeiro roupeiro. O seu andar era, naturalmente, pesado. Nunca a tinha visto a correr. Até àquele dia.

Aquela monstrenga demonstrou uma agilidade que nunca teria suspeitado, e desceu desde o 4.º andar até à rua num ápice. Nós acompanhávamos a descida com os urros que ela debitava, como se fosse uma locomotiva descontrolada.

O Hélder estava agarrado pelo palhaço que o denunciou, completamente aterrado de pavor. Ao sentir a D. Ermelinda a aproximar-se, o Hugo largou o Hélder e desatou a correr, cheio de medo, e durante umas horas não se soube nada dele.

O Hélder, depois de se mijar todinho, e a temer pela sua própria vida, correu para dentro da taberna, procurando uma ténue proteção junto do pai, que fazia desse estabelecimento comercial uma sua segunda casa. E como eu o compreendia.

Ao verem o Hélder a correr para dentro da taberna, todos os clientes que lá se encontravam desataram a fugir de lá, tentando regressar às próprias casas antes que fosse tarde de mais. Alguns ainda conseguiram, outros não, coitados.

Um deles foi o pai do Hélder, que agarrado pelo filho, não conseguiu correr como pretendia e antes de transpor a porta da taberna, deu de caras com a sua digníssima esposa, a deitar espuma pelos cantos da boca.

Levou o pai e levou o filho, e o taberneiro e mais uns quantos que pretendiam escapar nos intervalos da chuva. Foi um desacato tão grande que meteu polícia, bombeiros e ambulâncias, e não se falou de mais nada durante meses.

O Hélder foi, obviamente, quem mais levou, e inclusive teve de passar pelo hospital antes de rumar a casa, onde ficou uns tempos, sem permissão sequer de ir à varanda ver as vistas. O puto ainda tentou "pular a cerca" mas a mãe dele pô-lo na ordem de uma forma que nunca esqueceria. Pelo menos durante uns tempos...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Crápula (1 de 6) Hélder


Hélder

O Hélder é um crápula. Um verdadeiro cretino. Um canalha na mais fiel acessão da palavra. E se ainda fosse pouco, orgulhava-se disse e a própria mãe apoiava-o incondicionalmente. Ao saber disso, dava-me pena quando o via de mão dada a uma qualquer moça que com ele passeava na rua. "Coitada", murmurava eu.

Mas recordo que o Hélder nem sempre tinha sido assim. Tinha tido uma infância e uma juventude perfeitamente normal, temente a Deus e ao cinto do seu pai, mas principalmente à matrona da sua mãe, que metia medo com os seus berros e braços de lenhador, capazes de arrancar cabeças.

Enquanto viveu com os seus pais, o Hélder foi sempre acólito na missa de domingo, dos mais atentos nas aulas de catecismo, crisma e religião e moral, e até conseguiu tirar umas notas decentes, pelo menos até ao 12º ano, que concluiu já com alguma dificuldade.

Até essa altura, o Hélder era o que se podia chamar de um perfeito totó, incapaz de fazer algo moralmente questionável, de contar uma anedota ou história picante, sempre alinhado e aprumado, e acho que nem umas calças de ganga tinha para vestir, por serem demasiado radicais.

As mulheres para ele estavam completamente vedadas, pois a matrona dizia-lhe que nem se podia aproximar delas, pois o foco era o estudo, a profissão, a carreira. Em suma, o futuro. E o convívio com as “deusas do pecado” iriam perturbar-lhe a cabeça, desviando-lhe dos objetivos.

O Hélder não tinha qualquer sentimento de culpa por deixar de sair com os amigos, pela simples razão de não ter amigos. Os seus conhecidos mais próximos era eu e o André, que o conhecemos na turma e vivíamos perto. Mas que nunca fomos a casa dele. Nem queríamos ir, com pavor da mãe dele.

Eu, ele e o André estávamos na mesma turma do 12.º ano, e notei que ele andava diferente. Mas diferente já ele era, relativamente aos demais, mas estava ainda mais estranho que o normal dele. E lembro-me de comentar com o André, mas depressa passou porque os exames aproximavam-se rapidamente, e eram mais importantes que a parvoíce do Hélder.

Lembro-me que nesse verão eu e o André arranjámos namoradas novas, pois as “velhas” ficaram lá atrás, na escola antiga. Estávamos a começar uma vida nova, recheada de projetos, de sonhos, de viagens para fazer, de pessoas para conhecer e para aprender a ser adulto. Era o tempo da juventude responsável, cheios de sangue na guelra.

Eu o André já tínhamos tido várias pessoas nas nossas vidas, fossem elas amigas especiais, namoraditas e até umas namoradas a sério. Sabíamos algumas das regras desse jogo, e que por vezes se caraterizavam pela sua ausência, deturpação, enganos e desenganos, amuos, zangas e o melhor de tudo, a reconciliação. Já o Hélder não sabia nada acerca desse jogo, e esse simples facto veio a revelar-se perigoso.