terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O último resistente do Trabalho Presencial



A manhã enevoada prossegue sem ritmo, sem som, sem vultos. O frio húmido lá fora enregela até aos ossos, e eu minto para mim mesmo, dizendo que o este frio é revitalizante para o corpo e para a alma.

De súbito, o silêncio da manhã quebra-se quando touço o tocar do telefone fixo da minha secretária, e pasmado, fico a olhar para o estranho objeto, pois julgava que esse telefone era apenas para exposição, como os defuntos aparelhos de telefax.

A medo, aproximo a minha mão do auscultador do telefone fixo, a pensar: "Das duas uma, ou alguém ainda sabe que existo e quer saber se ainda cá estou, ou então é alguém que se enganou no número". Mas infelizmente não era nenhuma das duas hipóteses.

Quem me estava a ligar era uma criatura que odeia profundamente as novas telecomunicações, e por isso não me contatou, como os outros, por email ou skype. Ela ainda é do tempo em que se pediam as chamadas telefónicas às operadoras dos TLP.

A manhã quase perfeita desmorona-se nesse instante, pois do outro lado da antiga linha analógica ouço a sua voz arrogante como só os fracos de espirito conseguem ser, e altamente autoritária.

Tremi por dentro e por fora, e amaldiçoei a minha vida. Pensei "Porque raio não estou em teletrabalho?Engoli em seco dezoito vezes, pois a minha garganta estava mais seca que um Martini, e disse:

Mas que prazer. Muito bom dia, colega. Em que lhe posso ser útil?” E fiz para mim próprio o sorriso mais cínico que consegui, sabendo que a minha manhã tinha acabado, que o meu dia tinha acabado, que o meu precioso sossego tinha acabado. Talvez para sempre.

A pessoa em questão queria algo muito simples, ou seja, que lhe ensinasse toda a Cabala em três frases, que fizesse Vodu sem tocar nas teclas, e que lhe transmitisse por telepatia todos os meus conhecimentos sobre novas tecnologias. E isto sem dor.

Pedia-me assim o impossível e no imediato, e que eu que nem ousasse dizer que não, que não adiantava invocar a razoabilidade ou qualquer impossibilidade técnica ou humana. E o seu pedido rapidamente se transformou em exigência, e a exigência em ameaça.

Eu já pedia a todos os Santos que houvesse um apagão geral quando ouço claramente a campainha de casa da fera que me estava a ligar a tocar. Sorri, esperançado.

E a pessoa disse: “Colega, agora não posso mais perder tempo a falar consigo, pois acabaram de chegar os meus netos para me visitar, mas descanse que eu já volto a ligar”. E eu, cordialmente me despedi da criatura, e desliguei.

A cantarolar, arranco da parede o fio do telefone fixo, quebro o desgraçado do aparelho em vinte e três pequenos pedaços, arrumo os meus pertences, borrifo com água benta todo o espaço, penduro alho, e já de mochilas nas costas, elaboro um email para o meu chefe.

Chefe, é só para informar que irei para teletrabalho para sempre, mas se alguém me ligar através de um telefone fixo, digam a essa pessoa eu fui só tomar café, mas que volto logo. Abraço”.