Andreia estava estirada ao sol em cima de um penedo, gozando os últimos
raios solares daquele dia. Sabia que daqui a pouco teria de regressar a casa,
para junto dos seus. Mas enquanto aí estava conseguia libertar-se de tudo e de
todos, e de si também. Sonhava acordada. Vogava por aí, em pensamentos. Era o
que lhe restava. E que significava muito para ela. Era livre.
Desde
criança que vivia naquela aldeia. Austera como todos lá, rodeada de montes e
fetos. E de cabras. Apesar do que diziam os seus habitantes, não era bonita.
Nem ela nem a aldeia. Sabia-o. Mas que é a beleza afinal? Era assim tão
importante? Vital? Pensava que não. Sabia que não. Ao contrário da maioria dos
seus amigos, Andreia não sonhava com a vida nas grandes cidades. Era uma jovem
simples, sem grandes ambições, muito menos de viajar e conhecer outras pessoas
ou outras terras.
Ela era
diferente. Nunca o tinha admitido perante quase ninguém. Brincava com as
restantes crianças da aldeia, mas sentia que esse não era o seu mundo, a sua
terra, a sua época. A única pessoa a quem teve coragem de dizer o que sentia
fora a sua avó paterna, mulher forte de sentimentos e de crenças, que dos netos
a escolheu para partilhar algo. Já tinha partido mas a sua presença nunca se
tinha desvanecido.
Andreia
recordava tempos idos, felizes ou não, mas diferentes, idos. O que tinha na
alma era tristeza de não pertencer ali, como os outros, mas por outro lado,
alegria por se recordar, com vigor, das suas memórias, não só de outra vez
miúda mas também de mulher.
Josefina, a
sua falecida avó, tinha vivido largos anos na vila próxima com o seu marido,
Joaquim. Juntos tinham tido uma “venda”, pequena loja onde se vendia de
tudo, como era costume de então. Criaram a custo mas com amor os filhos, entre
eles Alexandre, pai de Andreia. Como mulher de armas, como se dizia na época,
Josefina não era apenas esposa e mãe, mas a força da família e do negócio. Nada
normal na altura, digamos. Alturas houve em que amigos do marido o criticaram
por “quem estar a vestir as bragas era ela, e não ele”. Nada que o
importunasse. Não queria estar com uma mulher que não fosse lutadora. Não
queria que ela mudasse. Amava-a também por ela ser assim.
Porém,
Josefina era mais do que parecia. Sentia. Sentia que o mundo era mais do que
via, mais do que o padre da aldeia lhes transmitia, do que os outros lhe
diziam. Sentia forte o coração do mundo. Havia sempre algo mais. Uma educação
rígida e não o temor dos outros impediam-na de questionar, de procurar saber
mais. De procurar as respostas às questões que lhe afloravam o espírito,
sempre. Acreditava em Deus, mas à sua maneira. Que Deus era a fonte de toda a
energia que fluía. Não o via nem sentia nem como o castigador nem como o
redentor. Era mais. Era tudo.
Anos
passaram. A velhice trouxe-a à aldeia natal do seu Joaquim, para ai ficar a
tomar conta dos seus netos e viver em paz os seus últimos tempos. A sua energia
vital esfumava-se mas os seus sentimentos permaneciam os mesmos. A energia de
Deus acompanhava-a, e sentia, sempre.
Estranhamente
ou não, uma das suas netas uma vez olhou para ela e reconheceu-a. Não como se
reconhece um ente querido com quem privou toda a sua curta vida, mas de modo
diferente. E Josefina reconheceu o olhar. Já o vira antes. Sabia o que era.
Sabia o que significava. Ela sabia. Ela via. Sabia quem ela era. Ou foi. A
partir daí tudo se transformou na vida das duas. Não eram necessárias palavras ou
actos, mas apenas olhares. Cúmplices, serenos, sabedores. Representavam tudo
para elas. Sentiam-se exultantes nesses breves momentos. Sentiam que afinal
havia muito mais do que parecia, do que lhes diziam.
Andreia
estava agora apenas acompanhada de penedos, fetos, cabras, pelo sol e pelas
nuvens. Porém, não estava sozinha. Estava com o Mundo. Feliz.
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