segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O Crápula (4 de 6) Fuga

 


FUGA

O Hélder? Não acredito! O puto mais sossegado do bairro não pode ter feito uma coisa destas! A maluca da Ermelinda vai ser avó! O Hélder passou do tipo mais incógnito ao mais badalado do bairro. E com toda a razão.

Naquela sociedade em que todos os filhos tinham de ter pai e mãe, casados e juntos para toda a vida, uma moça aparecer grávida de um tipo que nem tinha meios de subsistência era um grande choque. E se ainda fosse um espertalhão, ainda se compreendia. Mas era o Hélder! O puto mais sonso de toda a cidade.

Toda a gente falava disso, desde o padeiro, ao entregador de jornais, os professores, a varina, os bêbados, e até as mulheres de má fama. Todos incrédulos, e todos esticavam o dedo acusador ao Hélder, pois é sempre muito melhor atirar pedras que levar com elas na cabeça.

Até o padre, pessoa respeitada e sensata, conhecido por mediar todos os conflitos que surgiam no seu rebanho, referiu o caso na sua homilia semanal, e todos concordaram com a cabeça que é um caso de pura pouca vergonha, que não se podia voltar a repetir naquela comunidade.

Durante uns tempos não se viu nem o Hélder nem os seus pais. Os vizinhos diziam que eles tinham abalado para a terra durante a noite, a fugir da vergonha e do falario das gentes, e especialmente da família da moça, que inclusive já os tinham procurado logo após a fuga.

Eu sabia que em circunstâncias normais dificilmente alguém daria com a língua nos dentes e diria para onde eles tinham ido. Mas a brutalidade da D. Ermelinda fez com que ganhasse muitos inimigos, e depressa todos nós sabíamos para onde eles tinham fugido. E de certeza que os familiares da Rita também já sabiam…

Assim, foi sem surpresa que, passadas poucas semanas, numa manhã chuvosa e ventosa, vimos chegar a D. Ermelinda, acompanhada pelo marido e pelo Hélder, mais magro e sério. E com eles vinha a Rita, já visivelmente de esperanças.

Eles tinham casado, pelo anel de outo novo e brilhante que ambos postavam nos dedos, e desta forma a honra de ambos e das famílias estava parcialmente reposta. Deste modo, o puto Hélder era agora um homem de bem, casado e quase a ser pai.

Coitada da Rita, que iria viver na mesma casa da sua querida sogra, bruta que nem umas casas, e do Hélder, que sem preparo, teria de deixar os estudos para se dedicar a algo, de forma a levar dinheiro para a família.

A partir desse dia nunca mais ninguém viu o Hélder com um sorriso na cara. Pior, ele andava com uma cara de autêntico doido varrido. Eu só pensava “o miúdo quando nascer vai assustar-se quando vir a cara do pai”.

E tudo isto porque nenhum dos dois não conseguiu travar os seus apetites. Mas, pensava eu, que apetites? Nunca tinha visto o Hélder sequer a beijar ou a desejar uma miuda, quando mais saber o que fazer para a emprenhar. Algo estava errado naquela história. Só não sabia o quê.

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