DESACATO
A D. Ermelinda bem chamava pelo Hélder, mas dele nem o cheiro. E a vizinhaça desesperava, pois os berros da matrona a chamar pelo filho eram bem piores que os de um bezerro desmamado.
Claro está
que ninguém no seu perfeito juízo se atreveria a mandá-la calar, com receio de
consequências físicas e morais irreparáveis. É que a matrona era bruta de
língua, para além dos seus braços parecerem uns presuntos curados.
Já a
rouquidão ameaçava a garganta daquela verdadeira gárgula, quando vi de relance
o desgraçado do Hélder, a esconder-se atrás de um poste de iluminação, com
receio de ser esventrado pela sua progenitora.
É evidente
que num grupo de adolescentes há sempre um palhaço que quer ver confusão, e neste
caso, o Hugo, ao descobrir o medroso do Hélder escondido, desatou a gritar “Ó
D. Ermelinda, o seu filho já chegou”, e todos começámos a gritar o mesmo em
coro.
É fantástico
o poder da motivação, mesmo que seja resultado de raiva ou fúria. A D.
Ermelinda era gorda, entroncada, um verdadeiro roupeiro. O seu andar era,
naturalmente, pesado. Nunca a tinha visto a correr. Até àquele dia.
Aquela
monstrenga demonstrou uma agilidade que nunca teria suspeitado, e desceu desde
o 4.º andar até à rua num ápice. Nós acompanhávamos a descida com os urros que
ela debitava, como se fosse uma locomotiva descontrolada.
O Hélder
estava agarrado pelo palhaço que o denunciou, completamente aterrado de pavor.
Ao sentir a D. Ermelinda a aproximar-se, o Hugo largou o Hélder e desatou a
correr, cheio de medo, e durante umas horas não se soube nada dele.
O Hélder,
depois de se mijar todinho, e a temer pela sua própria vida, correu para dentro
da taberna, procurando uma ténue proteção junto do pai, que fazia desse
estabelecimento comercial uma sua segunda casa. E como eu o compreendia.
Ao verem o
Hélder a correr para dentro da taberna, todos os clientes que lá se encontravam
desataram a fugir de lá, tentando regressar às próprias casas antes que fosse
tarde de mais. Alguns ainda conseguiram, outros não, coitados.
Um deles foi
o pai do Hélder, que agarrado pelo filho, não conseguiu correr como pretendia e
antes de transpor a porta da taberna, deu de caras com a sua digníssima esposa,
a deitar espuma pelos cantos da boca.
Levou o pai
e levou o filho, e o taberneiro e mais uns quantos que pretendiam escapar nos
intervalos da chuva. Foi um desacato tão grande que meteu polícia, bombeiros e
ambulâncias, e não se falou de mais nada durante meses.
O Hélder foi, obviamente, quem mais levou, e inclusive teve de passar pelo hospital antes de rumar a casa, onde ficou uns tempos, sem permissão sequer de ir à varanda ver as vistas. O puto ainda tentou "pular a cerca" mas a mãe dele pô-lo na ordem de uma forma que nunca esqueceria. Pelo menos durante uns tempos...
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