terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O Comboio do Amor

 

Antes, amavam-se uns muito poucos e gostava-se de muitos, mas agora, Todos são Amados! São os do núcleo familiar, são os primos de terceiro e quarto grau, os tios da sobrinha, os amigos chegados, os que se conheceram ontem e também o gato da filha e o periquito perneta da mãe.

Ao se amar tanta gente, é natural que se tenham de estabelecer hierarquias, pois isto são como os Santos nos altares: nem todos podem estar no pedestal mais elevado, pois não há espaço, e uns têm de ficar mais abaixo. Faz parte da vida.

Assim, e de forma a ajudar quem tanto Ama a distribuir os Amados por Intensidade (Muito Forte, Forte, Médio e Fraquito), sugiro a criação de uma solução baseada no sistema ferroviário, com quatro Carruagens, que denomino de “Comboio do Amor”.

Carruagem Presidencial – Bancos forrados a couro de qualidade, com criados fardados a rigor a servir caviar e champagne Möet & Chandon. Esta carruagem está destinada aos que são VVIP (Very Very Important Person). São os amados incondicionalmente. Exclusivo família chegada. São a Realeza do Amor.

Carruagem de 1ª Classe – Bancos forrados a couro simples, com criados a servir paté de ganso e champagne Raposeira de Lamego. Esta carruagem está destinada a todos os que são VIP. São amados condicionalmente. Exclusivo família ou relacionados com ela. São a Alta Nobreza do Amor.

Carruagem de 2ª Classe – Bancos forrados a tecido, com serviço de self-service. Esta carruagem está destinada às pessoas pelas quais a pessoa que ama tem dívidas de gratidão ou parecidas. Exclusivo não família. São a Baixa Nobreza do Amor.

Carruagem de 3ª Classe – Bancos de madeira, e os passageiros têm de levar marmita. Está destinada aos Outros, classe ainda assim amada, mas se houver perturbação na relação amorosa, saem pela janela antes mesmo do comboio parar na próxima estação. São o Povo do Amor.

E tu? Em que Carruagem do Comboio do Amor estás?

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

O Atual Significado da Palavra Amor

 


O significado da palavra “Amor” mudou. Tornou-se uma palavra popular, quando antes era seleta. Agora é dita por todos e a todo o momento, quando antes esta só era dita a pessoas realmente especiais, e em ocasiões excecionais.

Sim, é verdade. A palavra “Amor” tornou-se vulgar e banal. “Amamos” a nossa série favorita, o nosso clube, os nossos amigos e os nossos familiares. Antes “gostávamos” ou “gostávamos muito”, mas agora já não gostamos, nós “amamos”.

Como não foi criada outra palavra para definir o sentimento de “muito mais do que gostar”, a palavra “Amor” está ainda em vigor. Só não sei por quanto tempo é que esse superlativo vai continuar a liderar as cotações das frases românticas.

Tal e qual como a inflação come o nosso poder de compra, com o dinheiro a valer cada vez menos, a importância da palavra “Amor” tem decrescido ao longo dos tempos, e agora vale realmente muito pouco.

Antes “gostávamos” dos amigos, tínhamos “paixões” fortes e passageiras, e “amávamos” o/a consorte. Tudo isso é passado para o léxico atual. Agora “Amamos” todos, sejam eles familiares, consorte, amigos, animais de estimação e músicas. Acabou o “gosto” ou a “paixão”. É só Amor!

Foram criados os diversos “Tipos de Amor”, como sejam o Amor incondicional, o Amor condicional, o Amor passageiro, o Amor rápido, o Amor lento, o Amor platónico, o Amor clubístico, o Amor um bocado falso, o Amor quase quase, entre outros.

E tipificaram-se os “Amados”, agrupados pelos diversos destinatários, sejam eles os familiares, o/a consorte, os amigos, o treinador e jogadores do clube favorito, Deus, Anjos, e assim por diante, numa mole imensa de pessoas e coisas.

Somados os “Tipos de Amor” com os “Amados” surge uma “Pirâmide do Amor”, em que no topo fica, por exemplo, o Amor incondicional aos familiares, ou ao clube do coração, e que acaba no amor foleiro, que aparece e desaparece numa noite bem bebida...

Assim, o Amor não desapareceu, apenas se transformou, popularizou-se, banalizou-se, é de todos e para todos, e não é só para alguns, poucos, eleitos, como dantes. É só mais um sinal dos tempos.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Da Perceção

Uma das caraterísticas marcantes como seres humanos é de gostarmos muito de ter certezas, de sentirmos o solo firme, palpável e confiável debaixo dos nossos pés. Neste contexto, adoramos ter a certeza de que conhecemos muito bem quem connosco priva diariamente.

Se perguntarmos a qualquer pessoa se conhece bem os seus pais, os seus filhos, os seus consortes, os seus amigos íntimos, a resposta é invariavelmente, sim, sem dúvida. Realmente, como não poderia conhecer extremamente bem qualquer uma dessas pessoas? Ridículo, não é?

O nosso cérebro não funciona bem com incertezas, com dúvidas, com o desconhecido. Ele gosta das coisas bem arrumadinhas, das certezas, do previsível.

Assim, se nos perguntarem como é a personalidade de determinada pessoa, dizemos sem qualquer dúvida, que “Essa pessoa é assim!” Sem dúvidas ou hesitações. Só certezas.

Porém, certezas não há, só a nossa perceção em relação a essa pessoa. Apenas conhecemos a forma como ela interage connosco, pois essa pessoa pode ter ou tem, para uma situação ou contexto análogo, um comportamento comigo e outro completamente diferente para com outra pessoa.

Então, como ficamos? Conhecemos muito bem ou não essa pessoa? O mais certo é que, no máximo, podemos supor! Não temos certezas, pois não o observamos a tempo inteiro e não estamos dentro da cabeça dele. Só da nossa.

Quantas vezes nos surpreendemos com a reação de uma pessoa, que afirmamos conhecer muito bem? Frases como “Não acredito que essa pessoa possa ter feito isso. Deve haver aqui algum engano”. Mas raramente há enganos. Ele fez mesmo isso pois, em parte, ele é assim, só que nunca tivemos essa perceção pois ele não o demonstrou.

Assim, apenas podemos prever uma resposta que alguém dará a um determinado estimulo e numa determinada situação, e apenas com base no histórico social comum. E isso não é conhecer bem ninguém. No fundo, só conhecemos o que o outro quer que seja conhecido por nós, e nada mais.

Já repararam que até os bebés têm comportamentos diferentes conforme as pessoas com quem eles privam? É que os humanos são verdadeiros mestres na adaptação, na camuflagem e no disfarce desde tenra idade!

E quantas vezes já ficámos surpreendidos connosco próprios, parecendo que não nos conhecemos, depois de termos nos observado a ter reações que consideramos esquisitas ou exageradas?

Assim, como podemos ficar admirados quando "descobrimos" que, afinal, não conhecemos verdadeiramente uma pessoa, se nem sequer nos conhecemos a nós próprios?

quarta-feira, 3 de julho de 2024

O Reclamante Militante

 

No decorrer dos meus anos de atividade como ser humano, tenho observado as pessoas que me rodeiam, e hoje dedico a minha reflexão a uma boa parte da população que, à falta de melhor termo, designo como Reclamante Militante.

Esse tipo de pessoa mais não faz do que reclamar de tudo e de todos, de forma permanentemente, mas estranhamente, não faz nada para alterar o estado das coisas. Nunca reclama de si próprio, pois considera-se um ser perfeito. O problema são os que o rodeia, que o levam à loucura.

Reclama do cônjuge, dos filhos e dos amigos, do trabalho, da política, da economia, da saúde, grita “já chega, não aguento mais”, mas depois de explodir, não quer que aconteça mais nada, pois na realidade não quer nenhuma mudança na sua vida. “Para o mal já basta assim”, como reza a tradição.

Considera que está numa relação insuportável, que já não consegue estar com a pessoa com quem partilha a vida, que se sente traído, roubado, que sempre deu demais do que recebeu, e por isso reclama “até que a voz me doa”, como cantava a eterna Fadista Maria da Fé.

Mas, na realidade, só quer ter o prazer e o direito de reclamar, pois não pretende acabar a relação, seja pelos filhos, pelos pais, pela estabilidade social, pela paz no Mundo, pelo medo de ainda ficar pior, eu sei lá. E acho que nem ele sabe. Ou se sabe, e não quer dizer.

Reclama da sua atividade profissional, dos rendimentos auferidos, do excesso ou da falta de trabalho, dos colegas e das chefias, do calor ou do frio, mas questionado porque não muda de trabalho, responde “Agora já não dá!” ou “Quem me roeu a carne que me roa os ossos. É aguentar!”.

Assim, concluo que, apesar dos protestos, esse tipo de pessoa aceita o que Deus, o Destino, o Karma ou o Governo lhes dá, desde que não mude nada na sua vida. E que todos os outros devem fazer o mesmo.

Sinceramente, não sei se esse tipo de pessoa é assim porque nasceu, foi educado ou foi o ensinamento da vida. No fundo, quer apenas que haja Sol na Eira e Chuva no Nabal. E que o deixem reclamar à vontade, para ficar tudo na mesma.