Fiquei a saber que o tema da conversa ainda era a
Berta e o Carlos quando cheguei à mercearia da Vicência, pois todos se calaram
quando eu entrei. E os estúpidos que tão mal fingiram que não estavam a dar à
língua sobre este assunto.
Mísero vilarejo onde um mexerico fica na ponta da
língua durante semanas. Claro que este tema só passaria quando surgisse
outro com igual ou superior importância. Mas como poderia isso acontecer, se
não se passa nada ali?
Passados uns momentos, e para minha surpresa, surge
a Berta, com uns enormes óculos escuros, e percebi logo que não estava à espera
de me ver, e muito menos de falar comigo, pois cumprimentou-me com um bocadito
mais de frieza do que eu esperava ou que estava habituada. Mas compreendi.
Demorámos o mínimo possível na mercearia, e reparei
que nesse entretanto ninguém saiu de lá, e inclusive todos ficaram a fingir que
liam os rótulos dos produtos. Até mesmo os pitosgas! Raio que os partam a
todos.
Eu saí para reentrar passados uns dois ou três
minutos, de propósito, para os surpreender na coscuvilhice. E apanhei-os a
todos a bichanar, esses cretinos da pior espécie. E chamei-lhes de tudo,
ficando eles todos de bico e calados, sem se atreverem sequer a levantar o
pescoço.
Quando saí de vez, vi a Berta a sorrir. Ela
conhecia-me e gostava da minha maneira de ser, pois mesmo quando as coisas
corriam mal, eu fazia-lhe surpresas só para lhe agradar.
“- Pus o pulha a andar, sabias? Dei-lhe um dinheirito
e uma mala de roupa. E que nunca mais me aparecesse à frente.” Disse-me ela num
tom baixo e lento, como se estivesse sob efeitos de calmantes. Fiquei
preocupada.
“- Ah ele já foi? E a Filomena?” Foste falar com
ela?” Perguntei-lhe.
“- Aquela p….? Não. Nem vou. Ela só se aproveitou
da nossa fraqueza. É que ela nunca gostou de mim.”
A minha conversa com a Berta terminou ali, pois ela
virou para casa sem me convidar para entrar. Fiquei parada durantes uns
instantes para ver se ela ainda me dizia mais alguma coisa, mas depois segui o
meu caminho.
Cada vez mais esta história se estava a parecer com
a minha, e fiquei ainda mais incomodada, pois o déjà vu era por demais
evidente.
Eu era muito mais ingénua do que a minha irmã,
quando tudo isso me aconteceu.
Eu e o Gonçalo namorámos bastante tempo e ele por
vezes parecia estar hesitante em estabelecer um compromisso mais sério
comigo. Só se decidiu quando o ameacei deixá-lo se não ficássemos noivos, pois
com a minha vida não brincava ele.
Eu tinha-o colocado entre a “espada e a parede” por
saber perfeitamente que o Gonçalo tinha como lema “levo as coisas sempre até ao
fim” e por isso casámos logo a seguir.
A cerimónia de casamento foi feita com pompa e
circunstância, de acordo com a tradição familiar e local, que assim o exigia a
jovens de famílias de algumas posses. Foi um dia feliz para mim. Não sabia eu
que tinha sido esse o último dia feliz com o Gonçalo.
Estúpida. Tinha sido melhor se tivesse ficado
quieta. Mas na altura nem desconfiava o que seria para mim a “maravilhosa”
vida de casada. Ainda acreditava nos contos de fada, e quando me alertaram
para os perigos, ignorei.
Uma pessoa quando se casa fá-lo para se libertar do
jugo dos pais e ao mesmo tempo para ir viver com a pessoa que ama. Estava
casada e, julgava eu, bem casada. O meu marido era desejado e eu invejada nas
redondezas.
Assim, ao casar, julgava que a minha vida fosse
mudar, e para melhor. Enganei-me e redondamente. Coitada de mim. Era tão tapadinha
na altura. Mas no entanto julgava-me mais esperta que os outros, e teimosa, só
via o que queria ver.
Mas eu não sabia é que para o Gonçalo, casar era
arranjar uma mulher que substituísse a sua querida mãezinha a tratar dele.
Literalmente! E mais. Era ter muito mais liberdade do que ela lhe dava.
Sim, a minha querida sogrinha conhecia a peça que
tinha parido, e daí lhe ter dado sempre uma rédea curta enquanto ele esteve
debaixo do seu tecto. E sim, ela era muito mais esperta e muito menos ingénua
que eu.
Queridas, desconfiem sempre de um tipo que vive e
sempre viveu em casa da mãe! O mais certo é que apenas vos queira para fazer o
mesmo que o Gonçalo me fez a mim: criada para todo o serviço. E sem
remuneração.
Passada uma semana já me estava a começar a arrepender,
mas continuei firme e hirta, pois não queria dar o braço a torcer.
A partir daí foi a descida aos infernos, cheio de
monólogos, de perguntas sem resposta, de mais ausências que presenças, de mais
choro que riso…..
“- Gonçalo, a que horas chegaste ontem à noite?”
“- Amor, porque não ficas hoje em casa?”
“- Gonçalo, não saias hoje porque a minha operação é
já amanhã.”
“- Amor, por favor, hoje fica comigo.”
“- Gonçalo, sabias que ontem foram os meus anos e nem sequer apareceste.”
Até que um dia a dura verdade bateu-me à porta.
Aquela que eu já sabia ou pelo menos desconfiava fortemente. Mas que continuava
em plena negação.
Um tio dele, farto de esperar e de desesperar para que o
sobrinho tomasse uma posição de Homem, veio a minha casa contar-me tudo. Que o
Gonçalo tinha outra família, e que a tinha ainda antes de casar comigo.
E não é que a família do Gonçalo afastou-se completamente
do tio, pois consideraram que ele tinha cometido uma traição. Em que ninho de
víboras estava eu metida, afinal?
Claro que o Gonçalo negou, renegou, zangou-se e até
insinuou que o tio estava interessado em mim. Que todos os que andavam a
espalhar boatos eram uns mentirosos e que apenas tinham inveja da nossa
felicidade.
Mas o rabo do Gonçalo estava bem preso, e um dia ficou
sem ele quando o meu pai apareceu lá em casa, e mais que farto das suas balelas,
expulsou-o. Só aí o Gonçalo compreendeu. Vi-o nos olhos abertos de espanto.
E eu dei-lhe um dinheirito e uma mala de roupa. E
disse-lhe que nunca mais me aparecesse à frente.
(continua)
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