O pobre automóvel andava à volta do bairro há bastante
tempo, bufando, sem se decidir por um dos inúmeros lugares de estacionamento
disponíveis.
Para a D. Luisa todos os lugares eram “demasiado estreitos”. Ou então “estacionar do lado esquerdo nem pensar”.
Bem, se fosse do lado direito era igual.
É que a D. Luisa procurava o que chamamos de "um lugarão". Vocês sabem,
daqueles que se estacionam de frente e com uns bons cinco metros entre o seu
automóvel e os outros.
E, claro, mesmo dentro da sua praceta. E de
preferência, junto à porta do prédio, para não ter de andar muito.
Como habitualmente nestas ocasiões a Proteção Civil, o
INEM e a PSP estavam de prevenção, tendo já sido emitidos os alertas da praxe à
população e as barreiras já estavam colocadas, estando os maqueiros dos
Bombeiros nas suas posições habituais.
As saídas de automóvel da D. Luisa careciam de tantas
prevenções e cuidados como as largadas de touros em Vila Franca de Xira. Aliás,
eram consideradas bem mais perigosas.
E até tem sentido. É que nas largadas os
habitantes dessas localidades já estavam prevenidos.
O pobre do automóvel continuava a dar voltas sobre
voltas, e as ruas do bairro iam ficando cada vez mais vazias de transeuntes,
acumulando-se no Centro Comercial ou fechando-se em casa, com tudo corrido.
Nem sempre foi assim naquele pacato bairro. A D. Luisa
desde sempre teve licença para conduzir, mas felizmente para todos, teve sempre
um receio quase patológico de conduzir.
“É que tenho de
olhar para tanta coisa que não consigo”. Dizia. E os seus vizinhos sorriam
de evidente felicidade. Agora já não o fazem.
Realmente assim era. Conduzir um automóvel requeria
colocar as mudanças, olhar para o espelho retrovisor do lado do condutor, do
lado do pendura e do habitáculo, saber quando era necessário colocar o pisca da
esquerda e o da direita, o limpa pára-brisas e as suas múltiplas velocidades,
estar atenta aos outros automóveis, aos erráticos transeuntes, aos semáforos,
aos sinais verticais, às passadeiras…...
Num frio mas soalheiro dia a notícia alastrou-se mais
rápido que o vírus da gripe numa sala de espera de um Centro de Saúde!
É que alguém tinha visto a D. Luisa sentada no lugar
do condutor de um automóvel novo, branco leite! E ainda por cima sem o marido
ao lado.
Foi um escândalo. Todos comentavam “Já viram isto?”, “Eu com esta idade já não posso anda a fugir daquela mulher” , “Com o andarilho não consigo correr nas
passadeiras!” ou ainda “Vou-me mudar.
Não quero correr riscos”.
Assistiu-se então naquele bairro às cinco fases
habituais de uma muito má notícia:
A negação “Não, a D. Luisa
jamais iria conduzir num automóvel”
A raiva “Eu mato-a. Eu desfaço aquela gaja!”
A negociação “D. Luisa, mas
afinal o que quer para que não conduza?”
A depressão “Eu jamais irei
sair de casa novamente!”
A aceitação “Foi o destino.
Não posso fazer nada em relação a isso….”
Andava tudo incendiado para aqueles lados. É que para
cúmulo o automóvel que a D. Luisa tinha adquirido não era dos chamados “Papa Reformas”, que com o seu motorzito,
que caso choquem com algum incauto transeunte não matam mas desmoralizam.
Não, a D. Luisa tinha investido num 1200cc, por isso,
perigosíssimo. Nas mãos dela, claro.
Cientes de que aquela zona se tinha tornado mais
perigosa que Alepo, as companhias de seguros tinham feito disparar os prémios
dos seguros de acidentes pessoais de todos os moradores da zona, para
consternação de todos.
Instantaneamente os preços das casas entraram em
profunda baixa, as lojas começaram a fechar e toda a economia da zona entrou em
profunda depressão.
Foi o transbordar do copo!
(continua)