HISTÓRIA
As
discussões entre a Rita e o Hélder começavam todas as manhãs bem cedo. E com os
gritos acordavam a D. Ermelinda, esta metia-se no meio para os calar. No início
ainda conseguia impor alguma ordem, mas foi sol de pouca dura.
Todos nós
percebíamos que o Hélder estava prestes a explodir, e que quando a “coisa
estava quente”, ele ameaçava contar a todos. Nessas ocasiões todo o bairro
sustinha a respiração para ouvir. Era a altura em que a Rita deixava de gritar
e batia com a porta. E todos nós retomávamos o que estávamos a fazer.
Todos os
dias era a mesma coisa. Gritos ao pequeno-almoço, porta do quarto a bater e a
porta da rua a bater, pois o Hélder ia trabalhar. Passadas umas horas ele
regressava do trabalho e havia mais gritos até ao jantar, porta do quarto a
bater. E desta forma sabíamos as horas, pois eles eram muito pontuais na sua
gritaria.
Tornou-se um
hábito, uma rotina familiar. Não eram os únicos no bairro. Só se tornavam
notados por serem quem são, pela sua história, e por sabermos que para além de
se darem mal, ali havia história que fedia. E que todos queriam saber.
Claro que já
lhes tinham tido várias vezes que não podiam andar nas discussões, pois a Rita
estava grávida e que isso podia fazer mal à criança, mas era escusado. Parecia
que eles adoravam aquilo, e até a D. Ermelinda já não conseguia parar as
batalhas verbais dos dois.
Num sábado eles
estavam, como habitualmente aos urros um com o outro. E foi quando a Rita bateu
a porta do quarto que ele disse, numa voz rouca e mais calma que o habitual “Amanhã à noite os teus pais vêm cá jantar e
vou-lhes contar tudo”.
Não se
ouviram mais discussões, nem nesse dia, nem no outro. Aliás, não se ouviu um
pio nessa casa. Só vimos a D. Ermelinda a comprar uns pargos muito jeitosos na
peixaria, sinal que o jantar com a família da Rita era de importância.
Somos um
povo curioso, demasiado até. Nunca tínhamos visto os pais da Rita, e queríamos
saber quem eles eram, e por isso todos nós ficámos na rua ou na janela, a
fingir que não era nada, quando vimos aparecer no principio da rua um casal
bem-apresentado. Só podiam ser eles. Os pais da Rita chegaram.
Toda a rua
estava parada a vê-los. E quando os pais da Rita notaram que eram o foco das
atenções, assustaram-se. Estavam já a dar uma cautelosa meia-volta quando o pai
do Hélder apareceu a saudá-los e os encaminhou para sua casa.
Quando por
fim acabou o jantar, todos nós vimos os pais da Rita saírem, e com eles a sua
filha, já com uma barriga que metia dó, com umas trouxas de roupa, sinal que a
sua estadia em casa do Hélder tinha terminado.
O pai do
Hélder saiu pouco depois, visivelmente abalado. Ia beber alguma coisa forte. E
confidenciou a um amigo que o bebé afinal não era do Hélder. Ele tinha sido
enganado por aquela putéfia. E o Hélder tinha descoberto a trama através de uma
prima da Rita, que não gostava nada dela e sabia da história.