quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A minha Ceia de Natal (1 de 2)

Estou deitado na minha cama a olhar para o tecto. Nem sei se estou a dormir ou acordado. Só sei que as horas teimam em não passar, e eu aqui, a pensar na minha vida, e especialmente na pergunta, à qual não consegui obter qualquer resposta:
Onde estava eu com a cabeça para convidar esta cambada toda para a minha Ceia de Natal?
Pouco passa das seis e meia da tarde e toca a campainha da porta, significando que pelo menos uns convidados acabaram de chegar. Raio que os parta, pois toda a gente sabe que, nestas ocasiões, quando se marca para as sete da tarde é para chegarem lá para as oito.
Afinal era só a vizinha da frente a avisar-me que tenho a luz da escada acesa. E também para me desejar um Feliz Natal e blá blá blá. Está bem, está bem, igualmente, etc etc. Simpática. Mas fez-me perder tempo que não tenho para assar o meu peru gigante.
Passados uns minutos toca outra vez a campainha, mas agora sei que são já uns caraças de convidados, que por julgarem que Lisboa tem sempre imensas filas de trânsito, teimam em sair cedo de casa. E é escusado dizer-lhe alguma coisa. Ponto.
Chegam carregados de prendas, de doces, de casacos, de gritaria, a pedir e a dar abraços e beijos, como se não me tivessem visto há, pelo menos, uns oito meses. Porra, estivemos juntos na semana passada, cabeçudos de um raio.
Bem antes das sete da tarde já lá estava todo o maralhal, aos pulos. E eu sem ter o recheio pronto, com um sorriso amarelo, sem conseguir prestar a devida atenção a todos, pois ainda tinha tanto ainda para fazer. Eles bem falavam comigo, mas eu só olhava para o lado, inquieto.
A coisa acalmou-se quando todos se cumprimentaram, e eu, de fininho, escapuli-me para a cozinha para ultimar as coisas. Recheio de peru e o próprio, batatas, bacalhau, peru, arroz, molhos, aperitivos, vinho, sumos, água. Fora os doces, que são sempre por conta dos convidados.
A coisa parece estar a correr bem. A pouca ajuda que se disponibilizou para fazer alguma coisa mostra-se eficaz e eficiente, tratando de tudo o que eu não deitei a mão. O resto da malta fica fora da cozinha, a coçar as partes furibundas. Há sempre pessoas que nem se oferecem para fazer coisa nenhuma. Devem julgar que os outros são criados deles.
O peru está no forno, o bacalhau na panela, a mesa está quase pronta, e o cabrão do cão portou-se tão bem que ainda nem fez nenhuma necessidade dentro de casa. Estou feliz. Permito-me conviver um pouco, mas sempre de olho na cozinha.
Toca o despertador. Tinha chegado finalmente a hora. O peru está assado. Olho para a crosta. Está tostadinha. Espeto o palito. Sai seco. Olho para o molho. Está grossinho. Olho para mim. Estou orgulhoso de mim mesmo. Temos cozinheiro. Só me falta a estrela Michelin.
Cuidadosamente, retiro a bandeja do peru do forno. Está bem quentinha. Tento pousá-la no fogão, mas já lá estava a panela do bacalhau. Tento desviá-la, mas as batatas cozidas também lá descansam. Olho para a mesa e vejo que está ainda mais cheia que o fogão.
Sinto o calor abrasador a bandeja a penetrar-me os dedos, pois tinha apenas um pano de cozinha entre estes e a bandeja do peru. Julgava que este processo ia demorar uns meros segundos, mas já estava a demorar uma eternidade. De repente, o calor atinge-me.
Largo a bandeja e o peru cai estrondosamente no chão, rebolando, e ao pousar, abre as suas pernas, parecendo uma meretriz debochada. Eu urro de dor das queimaduras dos dedos mas ninguém me liga nenhuma. Só importa mesmo é o cabrão do peru!
Ai o peru, ai o peru”, grita a Mónica. E apanha o bicho todo desconjuntado e atira-o para dentro da bandeja, já sem molho nenhum. Este estava a formar poça, para gaudio do oportunista do cão, que se estava a deliciar tanto do molho como do recheio, todo espalhado pelo chão da cozinha.
Depois de fechar a porta com o pé, ocultando o desastre nuclear que tinha ocorrido dos olhares desatentos, digo à Mónica que coloque o cabrão do peru noutra travessa, e siga a marinha que vai mesmo assim para a mesa. Ela olha para mim, espantada.
Segue a regra dos três segundos” digo com firmeza, enquanto banhava os meus desgraçados dedos em água fria. “Mas quais três segundos? Foi mais três minutos, não?”, diz ela, e com toda a razão. Mas fazer o quê? Comer biscoitos na Ceia de Natal?
Esse peru ia para cima da mesa nem que o cabrão do cão lhe tivesse mijasse em cima!”, digo, abrindo muito os olhos. Ela, de sorriso amarelo, diz que sim com a cabeça, enquanto tentava ajeitar as pernas todas debochadas do peru na travessa.
Os meus dedos parecem batatas fritas cobertas de ketchup, tal o inchaço e a cor vermelha que apresentam. Tendo ouvido barulho, aparece na porta a careca do Binho, a perguntar “Está tudo bem por aqui?”, ao qual eu respondo, furioso: “Põe-te já nas putas, meu cabrão!
(continua)

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